segunda-feira, 7 de maio de 2012

A MÃO QUE ESCREVE, A MÃO QUE TECE: AMOR,

Eis aqui as LINHAS de abertura do (P)CONTO : Amor, de Clarice Lispector


Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Não é tudo que Clarice escreveu que eu admiro, leio ou recomendo, mas absolutamente amo todos os seus contos e crônicas, especialmente os que tematizam a experiência das mulheres, mães de família e seu riquíssimo universo existencial.  No trecho do conto Amor, não há como não embarcar na descrição da cena mundana  íntima de todas nós: o cansaço, que nunca  admitimos ser demais, as compras para alimentar a família, cujo peso deforma o "novo saco de tricô",  certamente tecido pelas mãos que seguram as sementes que são frutos das próprias mãos. Os frutos, ah, os frutos, "eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta". Sem falar no vento, alento, "nas cortinas que ela mesma cortara".
Já nessa abertura, Clarice monta a relação entre a cadeia da natureza, da vida, do amor, que vai crescendo, e a obra executada pela mão, a mão, por meio de três imagens: o tricô, a tesoura e o crochê. O primeiro, o tricô que amortece o peso; depois a tesoura, que recorta o pano que filtra o vento, um tropo literário para a mudança e as intempéries. As cortinas, que para muitos têm pouco valor além do estético, aqui a dimensão: a proteção do ambiente interior, íntimo, familiar, um filtro de amor e de afeto. Por último, o crochê, tão sutilmente referido como aquilo que Ana emprestava "tranqüilamente" a tudo, a base, o fundamento, "sua corrente de vida".

"Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua CORRENTE de vida." 


Amo vocês, meus queridos leitores, e aguardo seus comentários, críticas e sugestões!

3 comentários:

  1. Nossa, Isabela, fica difícil pensar no que escrever a mais, fora tecer elogios à plenitude e profundidade de tua análise desse belo conto. Nunca esquecerei da primeira cadeira que tive em meu inacabado, por enquanto, curso de Letras Inglês, sobre a fonética e fonologia da Língua Inglesa, onde sabiamente - no entanto sem imaginar da minha motivação, do meu interesse e da minha, até então, enorme admiração, de décadas, por essa dita Língua Anglófona - disseste que poderíamos considerá-la uma língua "rudimentar"... Aquilo despertou-me para a realidade, outrora já percebida de maneira subconsciente, mas sufocada pelo apelo massivo da "mídia hollywoodiana" e praticidade mundial da fala do Tio Sam, onde, atualmente, rendo-me à beleza e riquezas incomparáveis da nossa Língua Portuguesa.
    Minha esposa, também professora de Letras Port&Ingl, sempre teve muito amor por nossa língua e apenas instrumentou, quando necessário, com o Inglês falado e escrito, sem paixão, o que me intrigava, hoje não mais.
    Desde então gosto mais ainda de manusear essa riquíssima língua. Trouxeste, com tuas precisas colocações, um olhar que provocou-me a singrar os olhos bem pelo texto - mérito teu - onde, de forma singela, restou-me observar a mensagem que senti nas mãos da personagem: a capacidade dócil, tenaz, pacífica e sustentadora da mulher em ser a vertente da real harmonia de seu lar. Mãos que poderiam tanto erguer-se revoltosas quanto abaterem-se queixosas e infelizes de suas realidades, todavia acabam por carregarem, nelas mesmas, os laços eternos de compromisso amoroso de toda uma família - invenção, por certo, da alma feminina do universo.
    Espero ter contribuído, não com frutos de grandes estudos ou titulações acadêmicas, posto que não as possuo, no entanto, cada fração linguística brotou de meu peito para chegar aos olhos teus, por amizade e imensa consideração pelo teu feliz intento. Grande abraço!! Adriano Gazzo.

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    1. Wow! Teu comentário me envaidece em várias dimensões, é uma coisa deveras "verdadeira e sumarenta", fruto do meu trabalho amoroso que de certa forma também te considero. Não busco necessariamente elogios, senão espaços de interlocução associando duas das minhas paixões, ao mesmo tempo pilares e referências: tricô e literatura.
      Espero poder contar com a tua generosa leitura e enriquecedora contribuição.
      Bless you.

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  2. Bella, além de bonita e poética, tua análise revela o teu grau de envolvimento com o universo clariceano.Como admiradora da escrita de Clarice, fiquei exultante ao sentir o que sublinhaste o imbricamento entre literatura e a vida de muitas mulheres. Parabéns!
    Obrigada por compartilhá-lo comigo. Beijão.

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