quarta-feira, 23 de maio de 2012

JOGO DE XADREZ- UMA COBERTA DE CAMA, JORGE LUÍS BORGES E MINHAS MEMÓRIAS

JOGO DE XADREZ (Descobri, enquanto escrevia esta postagem, por que minha mãe tinha uma coleção de poesia de Omar Kayan -que eu sabia ser o autor de Rubayat - em espanhol na estante da sala)

Sou de uma geração cujo jogo de tabuleiro mais complexo que havia era o Jogo de Xadrez. Hoje, ao me deparar com o número de variáveis e combinações exponenciais que mesmo o mais simples dos jogos de computador que crianças ainda não alfabetizadas manipulam, não há como não ser tomada por uma genuína humildade intelectual.
Pertenço a uma família na qual jogar xadrez é uma tradição, não daquelas impostas, mas naturalmente adquiridas e preservadas porque ... porque sim. Senão, vejamos: 
Pode ser que o natural fosse o aspecto ritualístico que reveste a prática deste jogo: a concentração, o silêncio, o exercício do raciocínio que permite a formulação da estratégia mas também dita a tática. Natural? Sim, natural como almoçar ao meio-dia em lugares definidos à mesa, natural como esperar ser servido numa determinada ordem, como contar com a conferência dos temas e com a certeza do elogio ou do puxão de orelha.
Jogar xadrez lá em casa, na minha infância e juventude, fazia parte do sobrenome, e a gente era conhecido como tal, "aqueles jogam xadrez, ", "os Vieira", "até as gurias jogam". Havia diversos tabuleiros, de diferentes materiais e tamanhos e idades e histórias. E as histórias faziam parte do jogo, entravam em jogo perfiladas nas 16 casas ocupadas pelas peças de cada jogador.
O mais antigo era um de bolso, cujas peças eram de marfim, brancas e tingidas de vermelho, que pertencera a meu avô,  Dr Joaquim Vieira Netto, engenheiro civil e geógrafo. Nesse, só quem jogava era meu pai e, em ocasiões raríssimas, meu irmão mais velho.
Lembro do maior deles, um tabuleiro lindo em marcheteria de louro claro e escuro com peças grandes, meu favorito. Posso sentir ainda hoje o cheiro da madeira, e o deslizar suave do feltro sob as peças descrevendo as diagonais, os "L's", as verticais e horizontais, empurradas pelo motor da emoção do desafio e pela força (do)peso da tomada de decisão.
E havia também aquele de tamanho médio, também de madeira, que nos acompanhava na pasta (na época ia-se para a aula com uma pasta, não mochila) para o colégio para jogar no intervalo ou antes de bater. Às vezes a gente montava um torneio na hora, mas que durava temporadas inteiras, até os exames finais, porque a gente estudava muito e só jogava quando sobrava tempo. Outro tempo, outro ritmo, outro mundo.
Encontrei esta receita de tabuleiro e peças em crochê que dá para carregar na bolsa! Maravilha!


http://acraftyblog.blogspot.com.br/2008/11/crochet-chess-set.html

Pois foi com saudades de jogar xadrez que eu comecei há mais de 2 meses, uma coberta de cama para meu filho mais velho, engenheiro como meu avô, cuja receita tem o título Cheque-Mate.  Confiram a foto da receita.

Aqui vocês encontram uma receita para tricotar tabuleiro e peças, muito legal!
http://www.clarescopefarrell.co.uk/pdf/chesscheckerboard.pdf


Ou, se preferirem, em crochê.
http://www.ravelry.com/patterns/library/crochet-chess-pieces

E uma receita sofisticada em crochê, lindíssima.
http://angicrochet.blogspot.com.br/2008/09/chess-set.html

Esta postagem não estaria completa sem uma referência literária, então segue para o seu deleite, caros leitores, nada mais nada menos do que Jogo de Xadrez, de Jorge Luís Borges, Uma obra prima.

JOGO DE XADREZ

I

Em seu grave rincão, os jogadores
as peças vão movendo. O tabuleiro
retarda-os até a aurora em seu severo
âmbito, em que se odeiam duas cores.
Dentro irradiam mágicos rigores
as formas: torre homérica, ligeiro
cavalo, armada rainha, rei postreiro,
oblíquo bispo e peões agressores.
Quando esses jogadores tenham ido,
quando o amplo tempo os haja consumido,
por certo não terá cessado o rito.
Foi no Oriente que se armou tal guerra,
cujo anfiteatro é hoje toda a terra.
Como aquele outro, este jogo é infinito.


II

Rei tênue, torto bispo, encarniçada
rainha, torre direta e peão ladino
por sobre o negro e o branco do caminho
buscam e libram a batalha armada.
Desconhecem que a mão assinalada
do jogador governa seu destino,
não sabem que um rigor adamantino
sujeita seu arbítrio e sua jornada.
Também o jogador é prisioneiro
(diz-nos Omar) de um outro tabuleiro
de negras noites e de brancos dias.
Deus move o jogador, e este a peleja.
Que deus por trás de Deus a trama enseja
de poeira e tempo e sonho e agonias?

AJEDREZ
I
En su grave rincón, los jugadores
Rigen las lentas piezas. El tablero
Los demora hasta el alba en su severo
Ámbito en que se odian dos colores.
Adentro irradian mágicos rigores
Las formas: torre homérica, ligero
Caballo, armada reina, rey postrero,
Oblicuo alfil y peones agresores.
Cuando los jugadores se hayan ido
Cuando el tiempo los haya consumido,
Ciertamente no habrá cesado el rito.
En el oriente se encendió esta guerra
Cuyo anfiteatro es hoy toda la tierra,
Como el otro, este juego es infinito.

II

Tenue rey, sesgo alfil, encarnizada
Reina, torre directa y peón ladino
Sobre lo negro y blanco del camino
Buscan y libran su batalla armada.
No saben que la mano señalada
Del jugador gobierna su destino,
No saben que un rigor adamantino
Sujeta su albedrío y su jornada.
También el jugador es prisionero
(La sentencia es de Omar) de otro tablero (1)
De negras noches y de blancos días.
Dios mueve al jugador y éste, la pieza.
¿Qué dios detrás de Dios la trama empieza
De polvo y tiempo y sueño y agonía?

Jorge Luis Borges

(1) La vida es un tablero de ajedrez, donde el Hado nos mueve cual peones, dando mates con penas, en cuanto termina el juego, nos saca del tablero y nos arroja a todos al cajón de la Nada.
(Omar Khayyam, matemático, astrônomo e poeta persa)

Game of Chess
I
In their grave corner, the players
Deploy the slow pieces. And the chessboard
Detains them until dawn in its severe
Compass in which two colors hate each other
Within it the shapes give off a magic
Strength: Homeric tower, and nimble
Horse, a fighting queen, a backward king,
A bishop on the bias, and aggressive pawns.
When the players have departed, and
When time has consumed them utterly,
The ritual will not have ended.
That war first flamed out in the east
Whose amphitheatre is now the world.
And like the other, this game is infinite.
II
Slight king, oblique bishop, and a queen
Blood-lusting; upright tower, crafty pawn--
Over the black and the white of their path
They foray and deliver armed battle.
They do not know it is the artful hand
Of the player that rules their fate
,
They do not know that an adamant rigor
Subdues their free will and their span.
But the player likewise is a prisoner
(The maxim is Omar's) on another board
Of dead-black nights and of white days.
God moves the player and he, the piece.
What god behind God originates the scheme
Of dust and time and dream and agony?

4 comentários:

  1. Excelente texto, nas proximidades do dia do Orgulho Nerd, nada mais apropriado do que um texto sobre Xadrez, o pai dos RPGs e RPSs

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    1. Meu filho Francisco sempre hiper-ultra-kilo-mega-giga-tera-yota bem informado... Não sabia que foi ontem Live Long and Prosper. Obrigada pela visita e pelo privilégio do comentário, come often!

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  2. Respostas
    1. Ivana, obrigada pelo comentário. Fico feliz que tenhas aproveitado a publicação.
      Volte sempre!

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